Wednesday, December 10th, 2025

Traição da Confiança: Quando Figuras de Cuidado se Tornam Monstros no Cinema e na Vida Real

Imagine o cenário aterrorizante: você dá entrada em um hospital para tratar uma infecção rotineira, confiando plenamente que está em um ambiente de cura, apenas para cruzar o caminho de um serial killer vestido de branco. Essa premissa, que poderia muito bem ter saído de um roteiro macabro de ficção, é a pura realidade retratada em “O Enfermeiro da Noite”. O filme da Netflix, lançado em 2022 e baseado na obra de Charles Graeber, trouxe à tona a história assustadora de Charles Cullen, um enfermeiro que transformou hospitais de Nova Jersey e da Pensilvânia em seus campos de caça particulares.

A trama ganha contornos ainda mais dramáticos sob a perspectiva de Amy Loughren. Na época dos crimes, ela não era apenas uma colega de trabalho de Cullen no hospital Somerset, mas uma amiga próxima que dividia as angústias da maternidade solo e da rotina exaustiva. Amy precisou lidar com um choque duplo: a descoberta de que seu amigo era um monstro e a culpa paralisante por não ter percebido os sinais antes. Em entrevistas, ela desabafou sobre o desejo ingênuo de acreditar que Cullen matava por misericórdia, uma mentira que contava a si mesma para preservar o afeto que sentia. A realidade, contudo, era brutal; ele matava a sangue frio, sem piedade.

A captura e as cicatrizes deixadas

A atuação de Amy foi crucial para interromper o ciclo de mortes. Colocando a própria segurança em risco e enfrentando problemas de saúde, ela colaborou ativamente com a polícia para obter as provas necessárias. Graças a esse esforço, foi possível identificar 29 vítimas fatais, embora as autoridades estimem que o número real possa ultrapassar 40 mortes. Cullen, um homem com um histórico conturbado que inclui a perda precoce da mãe e diversas tentativas de suicídio desde a infância, utilizava medicamentos como insulina e digoxina para causar overdoses letais.

Hoje, aos 64 anos, Charles Cullen cumpre 18 sentenças de prisão perpétua, consolidando-se como um dos assassinos em série mais prolíficos da história americana. Para Amy, ver essa história adaptada com a performance de Jessica Chastain foi uma forma de ressignificar o trauma. O filme permitiu que ela olhasse para o passado não apenas com culpa, mas com o orgulho de quem fez a coisa certa ao parar um predador que operava onde as pessoas deveriam estar mais seguras.

Do horror real à polêmica natalina

Enquanto a história de Cullen gela a espinha justamente por ser factual, o cinema de terror muitas vezes busca replicar essa quebra de confiança subvertendo ícones de inocência. Se um enfermeiro assassino choca pela realidade, um Papai Noel com um machado causou um verdadeiro pânico moral na década de 1980. O filme “Silent Night, Deadly Night” (Natal Sangrento), lançado em 1984, partiu de uma premissa simples e absurda para criar controvérsia: transformar o bom velhinho em um psicopata.

A trama, que hoje soa quase cômica para os fãs do gênero slasher, segue Billy, um jovem traumatizado após ver os pais serem assassinados por um criminoso vestido de Papai Noel. Anos depois, abusado em um orfanato e forçado a vestir a roupa vermelha no trabalho, ele surta e inicia uma matança para “punir os desobedientes”. O filme não economiza na violência gráfica e no mau gosto, incluindo cenas bizarras como uma mulher sendo empalada em uma cabeça de alce empalhada e estrangulamentos com luzes de Natal.

A revolta do público e a hipocrisia de Hollywood

A reação ao filme foi imediata e furiosa. Pais e grupos religiosos protestaram na porta dos cinemas, indignados com a profanação de um feriado sagrado. A ideia de associar o Natal a um massacre foi considerada inaceitável por muitos, incluindo o crítico Gene Siskel e o ator Mickey Rooney, que condenaram publicamente a produção. A pressão funcionou parcialmente; embora a distribuidora não tenha retirado o filme de cartaz oficialmente, a exibição foi limitada e muitos gerentes de cinema se recusaram a projetá-lo. Mesmo assim, a polêmica gerou lucro, rendendo milhões nas bilheterias contra um orçamento irrisório.

O que se seguiu prova que, em Hollywood, o dinheiro fala mais alto que a moralidade. A franquia “Silent Night, Deadly Night” gerou diversas sequências, tornando-se cultuada por um nicho de fãs que adoram o absurdo, especialmente após a cena do “Dia do Lixo” no segundo filme virar meme na internet. Mas a maior ironia de todas ficou por conta de Mickey Rooney. O mesmo ator que havia detonado o filme original por desrespeitar o Natal acabou aceitando um papel no quinto filme da franquia, “The Toymaker”, em 1991. No fim das contas, seja na manipulação fria de um enfermeiro real ou na exploração comercial de um feriado sagrado, a linha entre a ética e a monstruosidade muitas vezes depende apenas da conveniência.